segunda-feira, 26 de abril de 2010

texto do Bartolomeu Campos de Queirós


Ao receber o convite para estar neste encontro “Prazer em Ler”, passei a perseguir uma idéia. O que falar, nesse seminário, diante de especialistas que são minhas referências teóricas, que alimentam com criativas considerações o meu trabalho prático e toda a produção para a infância no país? Mas, por considerar os humanos como seres das relações, eu não poderia me negar o privilégio de estar ao lado dos senhores e senhoras, uma vez que sou movido pelo afeto, e não me recuso escutá-los. Meu prazer maior tem sido estar perto de pessoas que me são queridas.
Em minha perseguição veio a lembrança dos ensaios definitivos de Marina Colasanti: Fragatas para terras distantes (Global). Diante deles me surgiu a confirmação de que pouco eu tinha que dizer sobre as funções da leitura e os caminhos de cada um para se tornar leitor. Marina, em todo o seu trabalho, me surpreende e me interroga. E agora, quanto mais suponho que ler é superior a escrever, em vez de pensar no que dizer, reli os ensaios de Marina. E, ao reler, me assusto com o tamanho da minha distração. Reler me espanta do que me passou despercebido. Reler um bom texto é sempre rejuvenescer. E continuei a perseguir, em vão, uma nova idéia.
Se pelo afeto estou aqui, foi também pelo afeto que deixei as salas de aulas, os escritórios de assessorias, os gabinetes de administrações públicas, e que os meios continuam sendo mais importantes que os fins, e me fixei num trabalho que busca o fazer estético-literário como espaço primordial das relações. O livro de literatura sempre nos escuta atenciosamente. Se construído de palavra e fantasia, ele também nos dá a palavra e espaço para exercitar nossa fantasia de leitores. Umberto Eco reflete bem sobre tal aspecto em seu livro Obra aberta. O texto literário acorda paisagens no coração do leitor, onde o escritor nunca esteve.
Acredito que no encontro do leitor com o escritor – tendo o livro literário como suporte – uma terceira obra é construída, e esta jamais será escrita. Daí meu respeito à literatura pela sua sutileza em promover um dialogo subjetivo, íntimo, secreto e bem próximo da delicadeza com que os humanos gostam de ser tratados. Nascemos para ser adivinhados, e a literatura lê nosso desejo. Um dia li em Shakespeare:

Saibas ler o que o mudo amor escreve,
Que o fino amor ouvir com os olhos deve.

Minhas considerações aqui não são teóricas, nem deveriam sê-lo. Elas parte de reminiscências, de pequenas crenças nascidas ao longo do meu trabalho. São confissões que faço a amigos que acreditam, como eu, em outras alternativas para que o humano se aproprie, sempre mais, de sua própria humanidade. E isso só ocorre à medida que as relações são de liberdade, como são as do livro para o leitor.
Desde menino o silêncio foi meu amigo. Sempre vivi atordoado com o escândalo que é viver, sem ter ainda lido Camus. Carregava a pedra sem conhecer o pecado. Entre o silêncio encontrado nas sombras dos quintais, nas margens dos córregos, debaixo das mesas, eu conversava comigo sobre os mistérios. Mas jamais quis decifrá-los, apenas encantar-me. Todo pouco que sei aprendi com as leituras que o silêncio me permite, ainda hoje, fazer. No silêncio nós somos sujeitos sem fronteiras. Nunca aprendi a divisão do mundo em pedaços. O inteiro foi sempre minha ambição.
Eu suspeitava, já naquele tempo, que o hoje só me “é possível reinventado”, que inexiste uma conversa sem palavras, mesmo se impedida ainda de se fazer sonora para não romper o precioso vazio exterior. E as palavras foram meus objetos de brincar, de alterar o real, de trapacear com os incômodos. Elas ocupavam meus cômodos interiores e se mentiam ser silêncio. O silêncio é um estado operatório. Estar em silêncio é estar sem trabalho. Em criança, buscava entender a língua dos animais. Não poderia existir vida sem palavras, eu suspeitava.
Sempre me pareceu impossível viver sem as palavras. Por meio delas eu me encantava com seus poderes de alterar o real, que ainda hoje me engana e me trapaceia. Freqüentemente desconfio do real. já pensava que tudo está em vias de ser, sem conhecer o existencialismo de Sartre. Nem desconfiava que só se “é” quando definitivamente morto. Buscava decifrar, adivinhar o que havia antes e depois do real. Para mim a realidade sempre foi um ponto de partida, mesmo sabendo que só há uma definitiva e pesarosa linha de chegada.
O riacho doce, manso e estreito do meu quintal me fazia imaginar o mar imenso, salgado, mas para ser assim extenso era preciso estar abaixo de todas as águas, abaixo do meu riacho. Com as palavras, morando no meu silêncio, eu podia realizar quase o absoluto dos meus desejos. Com a palavra, tudo o que é pensável é possível. Meu mundo, tão vasto em incertezas, cabia nas minhas palavras. Sabemos, sem vacilar, onde reside a alegria ou a tristeza. Já no ato de nascer aprendemos a diferenciar a dor do prazer. Não existe escola melhor para ensinar essa dicotomia do que a própria vida. Mas é preciso palavra para nomear onde dói.
E sempre que a vontade de mudar as coisas me visitava, fazia-se necessário elaborar uma nova linguagem. Meu espanto por descobrir que a linguagem é que muda o mundo me fazia mais seu amante. E ainda agora, enquanto falo, sei que as áreas de conhecimento – a política, a educação, a economia – só vão descobrir novos caminhos se a palavra abrir diferentes percursos. Octavio Paz nos diz: “Esquece-se com freqüência de que, como todas as outras criações humanas, os impérios e os Estados estão feitos de palavras: são feitos verbais”. Desde sempre foi a palavra que organizou o caos. Freud bem praticou esse ato, ao acreditar que a palavra pode nos curar. E no absurdo em que vivemos no momento, em que as palavras não andam merecendo créditos, só novas palavras poderão revitalizar e resgatar a nossa esperança. É que as palavras transitam da realidade ao sonho sem pedir licença e movidas pela liberdade. Sem a liberdade jamais germinariam novos tempos. As palavras costuram a razão ao charme da loucura sem se importar com a desconhecida extensão dos mistérios. Daí Cecília Meireles nos confidenciar em Minas:

Ai, palavras, ai, palavras,
Que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem
- sois um homem que se enforca!

Desde sempre eu cismava o mundo. Para possuí-lo em mim eram necessárias as palavras. E, se as desconhecia, inventá-las era meu ofício. Para acomodar as emoções, como fazem as crianças, criando sons para matar a sede, solicitar colo, saciar a fome, ou sussurrar “mãe”, eu inventava ruídos para os meus desassossegos. Li em Affonso Romano de Sant’Anna.

Às vezes, é preciso internalizar-se
na escuridão da pedra
para merecer um raio de luz.

Um dia, as palavras que viviam no meu silêncio passaram a ganhar vôos, a se livrarem da minha prisão. Exilavam-se, mundo afora, sem promessa de retorno. Mas sempre foram de dúvidas os meus dizeres. A dúvida é a minha verdade. Tal ato só foi possível ao descobrir que as coisas existiam independentemente de mim, e como ter acesso à verdade que está fora de mim? Minha tarefa passou a ser atribuir novos sentidos ao pressuposto real. e, esse novo sentido era buscado na minha fantasia. Mas a alegria de perceber que todo real é uma fantasia que ganhou corpo me acalentava. E, depois, fantasiar é experienciar a liberdade. Quem fantasia exige conviver em liberdade.
E a memória, armazém do vivido e do sonhado, me tranqüilizava e me encantava por estar sempre sendo atropelada pela fantasia. De outra forma, viver seria um acúmulo sucessivo de culpas, pois o tempo não tem marcha à ré, mas a fantasia, interferindo na memória, nos aconselha cuidados com o futuro. E não se põem freios na fantasia. E, depois, me desculpem, fantasiar é tentar se livrar das culpas.
Se a desconfiança na exatidão do real me sufocava, a certeza de a fantasia redimensioná-lo me seduzia. Encontrei a leitura literária como o lugar capaz de me levar a tomar posse da minha fragilidade e de aconchegar a minha incoerência.
Eu via meu pai chegar do trabalho com o rosto exaurido pela repetição do seu cotidiano em longas estradas de terra, transportando manteiga. Não compreendia ainda que Sísifo, ao trilhar o mesmo caminho com a mesma pedra, num trabalho inútil, e condenado a repetir o mesmo percurso, muitas vezes confundia seu rosto com a pedra. Mas a nós, que não desobedecemos a Zeus, nos foi dada a liberdade de escolher o caminho por onde passar com nosso cotidiano. Criar passou a ser para mim um imperativo e quase cheguei a aconselhar meu pai a desviar de rotas para então despetrificar o seu rosto.
Quando professor, em trabalho de pesquisar novas metodologia educacionais, me assustei ao conferir que as crianças desconhecem a fragilidade. Tudo podem. Suas desmedidas capacidades de “fantasiar” colocam o cosmo, com seus mistérios, em suas mãos. A força da fantasia lhes garantia o desmedo.
Meu trabalho, enquanto professor, passou a ser dar asas às fantasias das crianças. Não desprezar a intuição como meio de ler a poesia que circula no mundo veio a ser minha metodologia. Por ser assim, a arte, como sua total falta de preconceitos, guiava nosso convívio. E nós éramos felizes. Eu sabia que o tempo, capaz de trocar a roupa do mundo, se encarregaria de torná-las educadamente frágeis. E para conviver com a fragilidade é indispensável não perder, irremediavelmente, a infância. Jamais a explicação racional esgotará o destino – em movimento – do mundo. Ele sempre será maior que a nossa precária inteligência.
Mas, ao nos apropriar da fragilidade, crescemos em curiosidade e nos desvencilhamos das pretensiosas verdades definitivas. Tornamo-nos ouvintes atenciosos do universo e adjetivamos seus sinais. Todo adjetivo surge de uma escolha interior. Reconhecer que todo conhecimento nos garante a fragilidade me parece o caminho seguro para estreitar relações mais dignas entre os povos. Bergson, ao escrever sobre a definitiva solidão de cada um, nos aconselha a tornar criadora tal solidão, buscando os encontros, as coesões. Tomar posse da fragilidade nos permite as trocas e faz da existência um processo de somas e divisões, com juros sempre lucrativos.
Aprendi em sala de aula que a criança é a mais intensa das metáforas. Não se pode compreendê-la como objeto a serviço do mundo. A tarefa do magistério é paciente e deve esperar que a mais rica das metáforas aflore continuamente. E para tanto a liberdade, somente a liberdade, confirmará que não existe um conceito de criança. E para tanto a liberdade, somente a liberdade, confirmará que não existe em um conceito de criança. Cada criança é um conceito. Cada criança é mais um intenso mistério que nos visita e nos surpreende pela singularidade. Também o homem não tem plural. Assim sendo, o mundo se enriquece, mais e mais, pela soma das diferenças. Preservar a infância é o que de melhor podemos fazer por ela. ao ter a possibilidade de viver em felicidade a infância, a vida se torna breve. Se sobrecarregada de faltas, desrespeito, violência, a vida se torna demasiadamente longa. A alegria vivida, ou a alegria sonhada, é que nos faz desejar um mais longo futuro. Não se ama a vida quando ela só nos agasalha com sofrimento.
Um dia descobri que se eu traçasse o futuro para nortear as crianças, se roubasse delas a capacidade de inventar seus destinos, se priorizasse a lógica formal em detrimento do sonho, eu não seria professor, mas apenas um cigano tirador de sorte, um sujeito investido de deus, capaz de conhecer o futuro dos homens e do mundo. Desrespeitaria os mistérios que fazem da existência um espaço de sustos e revelações e mais me empobreceria ao negar a existência da fragilidade. Educar-se sempre me pareceu ser tomar posse dos limites.
Augusto Rodrigues – que tão bem confirmou a capacidade criativa da criança fundando a Escolinha de Arte do Brasil – me disse, um dia, ser impossível saber qual criança é mais feliz quando está em liberdade criadora. E eu desconheço técnica de avaliação capaz de medir comparativamente a felicidade.
Mas não é fácil para a escola usar, como plenitude, a literatura. A escola faz da literatura um instrumento pedagógico. Ela sempre quer que a criança leia para saber, enquanto a literatura deve ser lida pelo prazer de ler. E, sempre que há sofrimento, na literatura ela surge vestida de beleza. Por ser assim corre-se o risco de a escola empobrecer a arte: querer objetivar aquilo que só dialoga com a subjetividade.
Mas não é difícil compreender sua função quando a escola não deseja ser apenas uma agência repetidora do já acontecido. Ao pretender atuar sobre a transformação do mundo, há que nutrir a fantasia dos educandos. Fantasiar é inerente ao sujeito desde o nascimento. Primeiro atributo para suportar o espanto que é viver. Volto a afirmar que todo real antes passou pela fantasia de alguém. Enquanto sujeitos, nós só nos realizamos quando nos acrescentamos ao mundo sem ignorar nossas singularidades. Acredito na força da literatura como objeto capaz de nos nutrir de coragem.
Não quero aqui ignorar as funções da informação. É preciso conhecer a tradição, as descobertas anteriores, para estarmos convictos de que rompemos com o anterior a nós. Possuímos uma história que não pode ser esquecida.
Mas acredito que uma busca está sendo realizada para ampliar nos educandos as fronteiras da fantasia e da palavra. Todo empenho tem sido feito para que a sensibilidade seja também um objeto de aprendizagem. Daí este nosso encontro. E não há momento mais propício do que este em que vivemos para promover mudanças, buscar novos sentidos, reinventar as novas maneiras para transformar um mundo que muito nos incomoda. Por que não a literatura?



(Batolomeu Campos de Queirós em:
MACHADO, Ana Maria et al. Nos Caminhos da Literatura . São Paulo: Peirópolis, 2007. )

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